Sem título 7
(Víctor Lemes)
Eu já escrevi recados em papel quadriculado,já escrevi cartas de amor,
já escrevi sobre o vento,
sobre a lua e sobre o pó.
Já li diversas vezes O Pequeno Príncipe,
já cansei de tocar as paredes,
já passei uma tarde construindo e destruindo montanhas.
Já senti a maldade correr nas veias,
já senti a vergonha de tê-la sentido em mim.
Eu corri muito por aí,
já tombei de joelhos na praça,
já chorei da dor que nunca senti.
Eu já escovei os dentes três vezes consecutivas,
já deixei de tomar banho por um dia,
já gritei no chuveiro.
Já olhei no espelho e me vi,
já chorei na frente do reflexo por não ver.
Já aprontei muito por pouco,
já desfiz amizades por impulsos ilógicos;
já apaguei depoimentos de Orkut,
já escondi minha face na terra como os avestruzes;
já odiei uma pessoa,
e já deixei de ser a criança que havia sido por anos.
Já escrevi e mandei errado.
Já deixei de escrever, e perdi a chance.
Já escrevi e não recebi respostas.
Já deixei de lado, e morri por dentro.
Já chorei no escuro, no claro, e nos sonhos.
Já ri muito de doer a barriga.
Já ri de tanto chorar, e chorar de tanto rir.
Eu já dei um livro, e ganhei um bombom em troca.
Já dei CDs, recebi olhares.
Já recebi abraços fortes, de amigos de um dia só.
Já recebi abraços fracos, de pessoas próximas.
Já deitei no carpete,
já me escondi debaixo da cama.
Já acampei no quarto, já cozinhei e fiz mercado.
Já escrevi de caneta esferográfica na lousa da escola.
Já esfolei o ombro,
já vi minhas veias pulsarem,
já vi o fundo da piscina,
já vi o medo de nadar.
Já torci pra cinco times,
já fui goleiro, já sonhei com foca.
Já senti meu anjo da guarda, a me observar.
Já tive bolo e festa de aniversário.
Já joguei Alex Kid em Master System sem fio,
já tive espada e escudo Kokiri.
Já fui Ranger azul,
já fui Hyoga e Shiryu,
já brinquei de Digimon,
já imitei Scyther,
já dancei Backstreet Boys e Rappa.
Já usei gravata mesmo sem gostar.
Já amarrei o tênis errado, e tropecei.
Já machuquei o dedo mindinho, maldito pato.
Já tive Pica-Pau, Sonic (e Mickey Mouse emprestado).
Já tive muito e dei valor pra pouco.
Por isso Deus me deu o dom da escrita.
Fez-me nascer num bendito dia,
escolheu bem meu signo e minha linha.
Escrevo pelo prazer de poder ler depois,
e lembrar-me de tudo que por um momento fui,
ou deixei de ser. Pra lembrar-me sempre
que eu sou aquele que Ele também é.
Que tanto aqui como acolá,
as palavras são poder, que
me dão coragem de enxergar
o que não quero ver.
Fez-me cego, para que anseie por ver.
Ver o que tudo me rodeia,
o que acontece no meu mundo.
Ver que o importante não é a rima,
ou a versificação. Que a poesia
não é filha do Logus, e nem é lógica.
Que nem todo velho é sábio,
e nem todo jovem é ignorante.
Que dez, nove anos de diferença
não diferenciam nada. Que
repetir quês e jás não me faz inferior
aos que se julgam cultos.
O que me preocupa é vê-los assim,
se perdendo à toa.
No futuro não teremos asilos,
Somente creches; pois as crianças
estão sendo abandonadas dentro de nós.
Estão sendo esquecidas pelos velhos de pensamento
que habitam nossa pobre cultura de prazeres.
De consumo, de imbecilidades, de traições, de hipocrisia...
Eu devia encontrar alguém,
tal qual o Vento, que entendesse
tudo isso e
me visse.
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